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DESPREZO PELA VIDA

05/08/2024 | Clic, Enéas Athanázio

A França vivia sob o tacão nazista, ocupada pelo exército alemão, durante a II Guerra Mundial. As prisões, torturas e fuzilamentos se tornaram tenebrosa rotina. A vida de um francês nada valia e todos os esforços se faziam necessários para sobreviver. Ocultar-se, omitir-se, evaporar-se eram as melhores fórmulas para continuar vivo. Ou, em contrapartida, aliar-se ao inimigo, ainda que correndo o risco de ser executado pela Resistência. Mesmo assim, essa foi a opção de Lotte, mantendo em sua própria casa um bordel para servir aos oficiais alemães.

Nesse ambiente deletério, misturado às profissionais do sexo – Blanche, Minna, Anny e outras – vivia Frank, filho da proprietária, mocetão bonito e dos seus 19 anos de idade. Alheio ao que se passava a seu redor, o rapaz parecia ausente de tudo aquilo. Bem vestido, envergando um legítimo “pelo de camelo”, trocava pernas pelas ruas recobertas de neve e frequentava os bares do bairro, juntando-se à pior ralé imaginável. Ali conheceu oficiais da ocupação, mulheres e muitos elementos de vida e ocupações duvidosas. Interessado em obter uma arma, tarefa difícil naqueles dias nebulosos, passou a desejar o revólver de um oficial gordo, beberrão e depravado que aparecia no Bar do Timo. Não havendo outro meio, não hesitou a matá-lo a facadas numa noite escura, nas proximidades do muro de um curtume abandonado. Apossou-se da arma ambicionada, mas teve a má sorte de ser visto por um vizinho do mesmo prédio, o motorneiro de bondes Holst, pai de Sissy, de cujo silêncio se tornou refém.

O tempo passa, o motorneiro não abre a boca, a filha dele se apaixona pelo rapaz que arma contra ela a mais indecente das ciladas. Nesse meio, é informado de que certo general, cujo nome nunca se pronunciava, colecionava relógios e pagava fortunas por raridades. Lembra-se, então, do relojoeiro de sua vila natal e resolve assaltá-lo. Reconhecido pela irmã dele, mata-a com o maior sangue-frio. Entregue a encomenda, recebe a metade do butim, importância muito alta, nada comum naqueles tempos de dinheiro curto. Passa a viver como um nababo, exibindo dinheiro e poder. Não contava ele, porém, com o imponderável: o dinheiro fora furtado pelo general e as notas estavam marcadas. Foi a sua perdição.

Quando menos espera, é preso e conduzido a uma escola improvisada em presídio. Não o torturam, preferem vencê-lo no cansaço, submetendo-o a seguidos interrogatórios. Ele resiste. Os dias se sucedem, os interrogatórios continuam e ele vai percebendo que eles tudo sabiam. Para seu espanto, descobre que Anny, uma das pensionistas, era agente da Resistência e emitia mensagens secretas. Como fazia isso constituía um mistério, pois passava os momentos livres lendo revistas. Recebe visitas da mãe e de Sissy. Aconselham-no a colaborar, mas ele resiste, nega e se recusa a responder. Mas o desgaste físico e psicológico é inevitável. Emagrece, vive sujo, barbudo, com os trajes amarrotados. Com dezenove dias de prisão não lembra nem de longe o moço bonito que foi e a vida lá fora parecia algo tão distante como uma miragem. Mas a técnica aplicada acaba mostrando seus resultados e ele se entrega. Confessa tudo, com datas, locais, horários. E depois se cala, sejam quais forem as consequências.  

Espancam-no, deixam-no nu no escritório, dão-lhe joelhadas nas partes genitais, só lhe dão sopa aguada para tomar. Mas ele nada diz, impenetrável no seu mutismo. Até que, numa madrugada fúnebre, o conduzem através do pátio, pisando na neve suja, ao ponto das execuções. Como vira tantos assim fazerem, levanta a gola do sobretudo e ruma cabisbaixo para o trágico desenlace. Entra em longa fila indiana à margem da galeria.

Esse, em breves pinceladas, o entrecho de “A Neve Estava Suja” (Cia. das Letras – S. Paulo – 2014), de Georges Simenon (1903/1989), com justa razão considerado um dos mais instigantes romances ambientados na França ocupada.

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