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CHARLOTTE DE BERRY – UMA PIRATA FICTÍCIA

09/09/2024 | Clic, Piratas dos Sete Mares

A história de Charlotte de Berry é tão novelesca e cheia de detalhes burlescos, que posso afirmar desde já, tratar-se de uma criação literária, baseada nos contos de aventuras publicados nos séculos XVIII e XIX. Ou seja, não existem documentos primários – ou mesmo do XVII – que nos assegurem a existência de Charlotte ou de sua história de vida. 

A primeira referência a ela vem de Edward Lloyd (1815-1890), um editor britânico conhecido pela publicação de histórias sensacionalistas de ficção baratas envolvendo vampiros, criminosos, assassinos e criaturas sobrenaturais, tudo com muito sangue. Essas publicações foram conhecidas na Inglaterra do século XIX como “Penny Dreadfuls” (Centavos de Sangue) e eram lançadas semanalmente ao custo de 1 centavo cada parte. Vendidos em tabacarias e pequenas lojas, o objetivo desses contos populares era alcançar uma camada semianalfabeta da população e lucrar pela venda em massa; e para isso valia inclusive o plágio descarado de escritores da época, cujo caso mais emblemático foi o de Charles Dickens. A vida de Charlotte surge desta forma, em 1836, no conto intitulado “History of the Pirates”. Com essas referências, de fato não podemos argumentar em favor da veracidade da história envolvendo a pirata Charlotte de Berry.

A exemplo dos melhores “Penny Dreadfuls” da época, contarei a história de Charlotte, baseado nos folhetins, e me antecipo pedindo desculpas ao leitor se, por vezes, utilizo palavras chulas para me expressar. Mas faz parte do jogo editorial do século XIX…

Existem diversas variantes sobre a vida de Charlotte, copiadas, plagiadas e recopiadas desde o século XIX. Mas para efeito de registro, podemos dizer que ela nasceu em 1636, na Inglaterra, onde se apaixona por um marinheiro – Jack Jib – ainda em sua adolescência. Contra a vontade de seus pais, ela se casa com o marinheiro e embarca em seu navio, disfarçada de homem, adotando o pseudônimo “Dick” (jargão popular referente ao sexo masculino). Contudo, seu segredo é descoberto por um oficial violento e mau caráter, que passa a manipulá-la em troca de favores sexuais. Não satisfeito com isso, começa a perseguir o marido de Charlotte, atribuindo-lhe serviços cada vez mais perigosos e desgastantes, com o intuito de matá-lo e assim ficar com Charlotte. Por fim, acusa o pobre Jack de incentivar um motim, e como a palavra de um oficial vale mais que a de um simples marinheiro, Charlotte foi obrigada a ver seu marido morrer por chicotadas em alto mar. Em seguida, estuprou nossa heroína até chegar no porto mais próximo.

Charlotte, que de boba não tinha nada, matou o Oficial assim que o navio aportou e fugiu, misturando-se na multidão, disfarçada de… mulher! Logo arruma um trabalho nas docas e segue a vida, até que um capitão mercante se apaixona perdidamente pela nossa pirata e a sequestra, levando-a para mares de África. Em alto mar, obriga Charlotte a se casar com ele, espancando-a e estuprando-a diversas vezes, mostrando sua verdadeira face de tirania e brutalidade. A tripulação que via aquilo e respeitava muito Charlotte (nota: os folhetins não explicam o motivo desse respeito dos marujos) realizaram um motim contra o capitão e nossa heroína finalmente se vinga dos abusos sexuais, decapitando seu segundo e breve marido. Em seguida, assume o navio como capitã e convence a tripulação a tornarem-se piratas! Destra forma, adotando o pseudônimo de “Capitão Rodolfo”, trabalharam por muitos anos com enorme sucesso.

Finalmente, Charlotte acaba se apaixonando por um espanhol chamado Armelio Gonzalez e casa-se pela terceira vez. Mas um infeliz naufrágio acaba por jogar nossa heroína, seu marido e parte da tripulação de piratas em uma pequena ilha deserta; e não demora muito para que recorram ao canibalismo como forma de sobrevivência. Quando a situação parecia irreversível, os piratas são resgatados por um navio mercante holandês; mas apenas para serem atacados em alto mar por um navio pirata! Charlotte e seus companheiros ajudam os holandeses e vencem a batalha, mas seu marido espanhol morre na luta, caindo ao mar (algumas versões falam que Armelio foi canibalizado na ilha). 

A história de Charlotte acaba com ela mergulhando para ficar junto ao corpo do marido morto, em um típico ato romântico da literatura de época, enquanto os holandeses comemoravam a vitória contra os piratas.

E assim, chega ao fim a história (fictícia) da mulher pirata, conhecida como Charlotte de Berry!

Dalton Delfini Maziero é historiador, escritor, especialista em arqueologia e explorador. Pesquisador dos povos pré-colombianos e história da pirataria marítima. Visite a Página do Escritor, clique aqui.

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