O universo pré-colombiano foi muito mais complexo do que podemos imaginar. Estudar ruínas arqueológicas como Machu Picchu, Tiwanaku, Caral, Tikal ou Teotihuacán é apenas uma parte de nossa tentativa de compreensão da forma de vida desses antigos povos. Mas o tipo de vida que eles levaram vai muito além do que os vestígios físicos podem nos revelar. Para irmos além, devemos incluir a antropologia que nos dará pistas sobre a mentalidade dessas civilizações e a forma como elas viam e entendiam o mundo que as cercava.
Com a invasão espanhola nas Américas, uma cadeia milenar de pensamentos e rituais foi rompida. Uma série de práticas e tradições foi quebrada. Por este motivo, é tão difícil hoje para nós aceitarmos certas visões e lógicas praticadas pelos antigos habitantes das Américas, que se aproximavam da natureza e do mundo sagrado, lugares dos quais nós nos afastamos.
A prática de rituais que aproximavam os homens do universo sagrado que o circundava é chamada Cosmovisão. Era uma forma muito peculiar de enxergar o mundo, de entender como a engrenagem da vida funcionava e como ele mesmo – o homem – estava inserido nesse universo que nos acolhia. Podemos apontar alguns conceitos e práticas que fazem parte da cosmovisão pré-colombiana, como a crença em Pachamama, uma entidade que representava a terra, o tempo e a natureza; o culto aos Antepassados, que envolvia rituais específicos, oferendas e respeito aos mortos; ou a eleição de Huacas, lugares e objetos sagrados que tinham vida própria e que eram cultuados através de peregrinações sagradas.
Na região Andina (terras altas da América do Sul), o mundo era concebido como um ser vivo composto por três planos distintos. O primeiro deles era chamado Hanan Pacha, um plano superior onde habitavam deuses como Pachacamac, Wiracocha ou Inti, o Sol. O plano terrestre era chamado Kay Pacha, onde viviam homens, animais e a natureza como a conhecemos. Já o mundo inferior ou mundo subterrâneo era chamado Ukhu Pacha, habitado pelos mortos e não nascidos, e cujo acesso era feitos por cavernas e nascentes de água.
Dentro do universo da cosmovisão pré-colombiana, no mundo de Kay Pacha, onde os homens viviam, destacam-se vários rituais entre os quais o chamado Taqui, uma dança sagrada identitária de comunidades as mais diversas. A primeira pessoa a mencionar essa prática foi Cristóbal de Molina (1529-1585), conhecido como El Cusqueño. Ele foi um clérigo espanhol, autor de um livro brilhante chamado “Relación de las fábulas y ritos de los Incas”, escrita em 1576. Nesta obra, Molina descreve uma dança sagrada identitária de comunidades quêchuas, conhecida como Taqui.
No Taqui descrito por Molina, uma comunidade apresentou sua dança típica na praça central de Cusco, capital do império inca. Nela, uma fileira de homens e outra de mulheres seguravam ao mesmo tempo uma corda, que representava uma serpente. Não só a dança como o animal – serpente – eram identitários daquela comunidade. Ou seja, nenhuma outra praticava aquela dança. Ao final da apresentação, eles depositavam a corda no solo em forma de espiral, simulando o enrolar do corpo da serpente.
Alguns pesquisadores como Aurélio Rodríguez acreditam que essa dança sagrada está associada a criação de alguns geoglifos no litoral do Peru, desenhos (e linhas) gigantes feitos no solo do deserto. Esses desenhos poderiam funcionar como palcos de dança comunitária de Taqui. A hipótese sugere que um geoglifo então não precisava ser construído para ser visto, mas sim, sentido. Sentido através da dança identitária de um determinado grupo, que ali manifestava seu ritual, pedindo aos deuses e ancestrais, benefícios provavelmente ligados à fertilidade e bem aventurança nas próximas colheitas.
O Taqui é apenas um exemplo de como o homem moderno se distanciou do universo sagrado e natural no qual estavam imersas as civilizações pré-colombianas. Um mundo cuja lógica é tão difícil de ser compreendido por nossas mentes modernas, e que se perdeu irremediavelmente na ruptura causada pela chegada dos invasores europeus no século XVI.
Dalton Delfini Maziero é historiador, escritor, especialista em arqueologia e explorador. Pesquisador dos povos pré-colombianos e história da pirataria marítima. Visite a Página do Escritor (clique aqui)
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