O escritor catarinense Mario Tessari lançou um alentado romance que merece todas as atenções. Creio que é o mais encorpado livro de nossa estante romanesca ou, pelo menos, não me lembro de outro igual. Trata-se de “Suçurê” (Edição do Autor – Tubarão/SC – 2024) e contém nada menos que 624 páginas, além de minucioso mapa do enredo e nomenclatura dos personagens. Como se afirmava que livro verdadeiro é aquele que fica em pé na estante, pode-se concluir que o Autor produziu um verdadeiro livro. Segundo informa ele, os originais foram digitados entre julho de 2015 e abril de 2016, em média uma hora por dia, “seguindo em enredo concebido na juventude que foi enriquecido por pesquisas geográficas e históricas.” Uma obra realizada com o auxílio do tempo, embora a vivência e a memória privilegiada tenham contribuído de maneira exemplar como a leitura revela.
Destacam-se no correr da narrativa alguns personagens em torno dos quais tudo passa a girar. Assim é Icobé, figura central, que luta para viver, tem vontade de viver de forma diferente. Speziale, velho farmacêutico, transforma-se em segundo pai do menino. Schreiner, marceneiro, e sua esposa, amigos que muito ajudarão. O Coronel, cujo nome não aparece, e os padres cujo auxílio e conselhos são decisivos. Contrariando a regra, o Coronel, embora homem simples e rude, é bom amigo e tem especial simpatia pelo jovem que o orienta na correspondência e na interpretação de documentos. Locais com nomes típicos e outras pessoas vão povoando a história.
O romance é situado no interior dos Campos Gerais, à margem ou nas proximidades da ferrovia. A natureza exuberante, os costumes, o linguajar do povo, tudo me leva a Calmon, ao Pito Aceso, à Lança e outros povoados semelhantes onde convivo com o povo e ouço seu linguajar característico. Nos mínimos detalhes o Autor restaura ou reconstrói a realidade, como ele próprio diz.
Tudo tem início com o José, caboclo xucro, pai de família numerosa e casado com a Mariquinha. Não tem sobrenome e parece tomado de um desespero íntimo que não revela. Tudo indica que não encontra saída. Compra o revólver do bodegueiro e pratica uma mortandade nunca vista naquelas bandas, ainda por cima dentro da igreja. O crime abala a vida e dele só sobrevive um dos filhos, Icobé, que vai carregar nas costas por longos anos o peso da tragédia e do preconceito. Mas o menino é lutador, embora com o ânimo arrasado e na dependência dos outros. Encontra no farmacêutico e no marceneiro os primeiros arrimos e inicia os estudos em um colégio e depois no seminário.
A leitura sugere um romance memorialista ou autobiográfico, embora seja arriscado afirmar. É certo, porém, que o Autor teve intensa experiência de vida na região. Há referências ao Contestado e à Guerra Santa que estremeceu os sertões catarinenses, aos pinhões sapecados na brasa e às espigas de milho verde, à derrubada inclemente e desordenada dos pinheiros, ao cigarro de palha e fumo amarelinho preparado no capricho e ao chimarrão. Também há referências a Leodato, a Perdizinhas e aos ataques dos soldados contra os caboclos. Tudo envolto em perfeito linguajar regional. Enquanto Icobé luta pela vida, estuda e aprende, é dedicado e progride nas leituras e nos estudos. Descobre o “Winnetou”, de Karl May, autor muito lido no país naquele período histórico.
A narrativa prossegue. Vencida a orfandade marcada, triste e pesada, sobrevém uma mocidade promissora, o ensino superior e a vida urbana, o ensino superior, o mestrado e o magistério. E então um olhar ao passado e a Suçurê, remédio que deixa manso e, creio eu, cicatriza as dores antigas. Icobé viveu por oitenta anos, lutou e venceu os desafios que enfrentou no caminho. E por aqui vou encerrando com o convite ao leitor para que percorra estas páginas e viva uma grande experiência, inclusive conhecendo melhor a vida de nossa Serra-Acima.