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JORGE AMADO NA VISÃO ALHEIA

11/03/2024 | Clic, Enéas Athanázio

Sobrinho de Jorge Amado, tendo convivido com ele por longos anos, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo e na Bahia, Roberto Amado publicou um livro dos mais interessantes sobre a vida do escritor e suas atividades. Trata-se de “Jorge Amado, Meu Tio”, publicado pela IBRASA (S. Paulo – 2021). É um alentado volume com mais de 280 páginas e rico em material iconográfico, exibindo inúmeras fotos inéditas, de autoria do próprio autor do livro. Jornalista e escritor, o autor se revela um atento observador, dono de admirável memória e grande admirador do tio retratado na obra.

Não se trata, como adverte o próprio autor, de uma biografia nos moldes tradicionais, mas antes de um livro de memórias em que entram as dele próprio e de outras pessoas. Enquanto a biografia se aproxima da história, exigindo pesquisas, precisão de datas e fatos, as memórias constituem recordações, lembranças e relatos mais livres e sem maiores exigências. Biografias e memórias foram gêneros pouco valorizados no Brasil e por longo tempo. Lembro-me ainda de que nos meus tempos escolares os professores em geral menosprezavam os gêneros. Surgiram, no entanto, biógrafos e memorialistas de excelente qualidade, elevando os gêneros e garantindo-lhes posição de relevo em nossas letras. Humberto de Campos, Gilberto Amado, Pedro Nava são exemplos significativos. 

Desde garoto Roberto Amado esteve em contato com o tio célebre, com ele conversava, ou melhor, perguntava com total liberdade, aproveitando-se da acolhida que ele lhe dispensava. A primeira impressão que a leitura deixa é de que Jorge Amado foi um bonachão, mais pera gordo, risonho e apreciador de piadas e prosas malandras. Isso se acentua a partir do momento em que passou a andar de bermudas, camisas floreadas e um chapelão de palha. Adotou também uma bengala, embora não necessitasse dela. Era um “it”.

Em matéria de viagem, o escritor preferia ficar no chão. Tinha um medo pânico de avião e só conseguiu superar quando já entrado em anos, mesmo porque não haveria outro jeito para realizar suas inúmeras viagens internacionais para cumprir compromissos culturais e literários. Navios seriam muito demorados. No entanto, é curioso anotar que jamais aprendeu a dirigir. Gostava de fazer a revisão de seus textos e para isso, refestelado numa cama, lia em voz alta enquanto a esposa, Zélia Gattai, escutava e fazia observações sobre eventuais erros. Era o que ele chamava de revisão batida. Esmerava-se para cumprir os prazos para revisões, como aconteceu com os originais do romance “Dona Flor e seus dois maridos” que o autor do livro presenciou. Observa o autor que Jorge transbordava de histórias, mas não se preocupava muito em trabalhar a linguagem. Desejava, e conseguiu, atingir o povo; não era um estilista que ficava acariciando as palavras como dizia Maupassant. 

Nas conversas com o sobrinho Jorge Amado recomendava a leitura de livros que julgava importantes. Dentre aqueles que o autor recorda estão os dos brasileiros Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo e outros tantos. Entre os estrangeiros, insistia na leitura de “Judeus sem dinheiro”, de autoria de Michael Gold (Itzok Isaac Granich) e “A queda de Paris”, de autoria de Ilya Ehrenburg, grande amigo de Jorge e considerado o maior poeta russo da época. O primeiro destes livros me causou intensa impressão. Ana Seghers e Mikhail Sholokhov também mereciam indicação, sendo este último considerado por ele um romancista à altura de León Tolstoi. O julgamento de Jorge foi ratificado pela Academia Sueca, em 1965, ao conferir a Sholokhov o Prêmio Nobel de Literatura. Na opinião dele, no entanto, foi uma pessoa arrogante e antipática. Quanto ao Nobel, o mundo leitor esperava sempre a indicação de Jorge, mas isso nunca aconteceu. 

Anota o autor que Jorge Amado viveu cercado de celebridades do mundo todo. Não foi por acaso que se tornou o escritor mais traduzido e um dos mais lidos entre os autores, publicado em 50 países e 39 idiomas, alguns remotos e estranhos. Fosse em Paris, no Rio de Janeiro, São Paulo ou na Bahia, acorriam famosos de toda parte para conhecê-lo, alguns convidados e outros nem tanto. Entre as figuras citadas estão o cineasta Roman Polanski, o ator Jack Nicholson, Ilon Iliescu, o presidente da Romênia, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, o editor português Francisco Lyon de Castro, Pablo Picasso, o presidente francês François Miterrand, o poeta Pablo Neruda, Roger Bastide, Hansen Bahia, o editor americano Alfred A. Knopf, um dos maiores do mundo. e que acabou casando com uma baiana, e incontáveis outros, sem contar os que o cercavam em Zamek Dobris, na extinta Tchecoslováruia, o Castelo dos Escritores, onde ele e Zélia estiveram exilados e conviveram com escritores de inúmeros países. 

Brasileiros de renome também o visitavam sempre. Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Ricardo Ramos Filho, João Ubaldo Ribeiro, Guido Guerra, Aldemir Martins, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney, Júlio de Mesquita Filho, Heloisa Ramos, viúva de Graciliano, e numerosos outros estavam com ele quando a oportunidade se apresentava. Havia ainda os estranhos que “invadiam” a casa do Rio Vermelho e eram encontrados em todos os cômodos, olhando, fotografando, cheirando, bisbilhotando.

A roda de amigos com a qual convivia na Bahia não poderia ser mais brilhante. Caribê, Pierre Verger, Mirabeau Sampaio e Calasans, para ficar nos mais chegados.

Fosse um figurão ou um anônimo, a todos ele atendia bem e tratava com simpatia.

O autor do livro reconstitui em detalhes a vida política e a atividade partidária de Jorge Amado. Foi deputado federal eleito por São Paulo e com grande votação. Teve importantes projetos aprovados. Mais tarde, em 1948, o TSE cassou o mandato de 14 parlamentares, dentre os quais o dele, por considerar seu partido incompatível com os princípios democráticos. O relator desse acórdão foi ninguém menos do que José Antônio Nogueira, um dos integrantes do Grupo do Minarete ao qual pertencia Monteiro Lobato. Em 2012, a Câmara dos Deputados fez a devolução simbólica dos mandatos cassados, inclusive o de Jorge Amado. Decisão tardia, mas antes tarde do que nunca. 

Embora filiado e dedicado aos ideais do partido, Jorge começou a rever suas convicções. O caso de Artur London, importante quadro partidário na Tchecoslováquia e herói da Guerra Civil Espanhola, que foi preso, torturado e morto lhe causou profundo choque. O histórico discurso de Nikita Kruschov, proferido no XX Congresso do PC, em Moscou, no ano de 1956, provocou-lhe grande revolta, como a tantos outros, inclusive Neruda. Nessa fala o orador denunciava, com fatos, nomes e datas, as terríveis atrocidades praticadas por Stálin e até então censuradas. Stálin estava tomado de uma paranoia que o fazia ver espiões, traidores e trotskistas em companheiros leais e dedicados. Dizem seus biógrafos que, ao morrer, ele vinha se preparando para iniciar nova onda de terror contra o povo indefeso e amedrontado. Desde então Jorge se afastou do partido e da militância e isso provocou reflexos benévolos na sua obra literária.    

Outros tantos momentos da trepidante vida de Jorge Amado são reconstituídos em detalhes. As viagens pelo país e pelo mundo, o exílio em Dobris, as incontáveis homenagens e prêmios, a permanência no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Paris e, até em Estância, onde nasceu Gilberto Amado, e, por fim, a fixação definitiva na Bahia, onde ele e Zélia se estabeleceram na Casa do Rio Vermelho, Rua Alagoinha, 33, que se tornou um recanto belíssimo e célebre em Salvador, hoje funcionando como museu. A paciência e a dedicação com que remodelaram a casa e adornaram com obras de artesanato, o esmero dedicado ao jardim com suas árvores, plantas, flores, lagos e o quiosque onde se refugiava para escrever em paz. O amor pelos bichos domésticos, destacando-se o papagaio Papai e o cachorro Nacib que ficaram na memória. A ligação do escritor ao Candomblé e sua participação nos eventos religiosos ficaram muito conhecidas, embora o autor afirme que ele não acreditava em nada daquilo. A mania de usar palavrões, tanto falando como escrevendo, lhe valeu muitas críticas. Ele ria, afirmando que o povo usa palavrões sem problema, tanto que às vezes era chamado de “russo fdp” em plena rua. “Com o tempo isso foi mudando, é verdade, – escreve o autor – e sua obra hoje é tida como clássica, um exemplo da identidade brasileira e indicada pelos educadores.” Jorge Amado colecionou amigos em todo o mundo. Não obstante, também teve desafetos. E quem não os tem, inclusive os inimigos gratuitos?  Para estes, “ele dizia que tinha um cemitério particular onde enterrava essas ex-amizades e lá deixava para sempre, relegadas ao esquecimento eterno, a ponto de nem sequer pronunciar seus nomes.” 

Jorge Amado viveu como poucos brasileiros a vida do escritor. Nunca necessitou de outros ganhos que não fossem os direitos autorais. Conheceu a prosperidade e foi feliz com a esposa Zélia, os filhos, os irmãos e os sobrinhos pelos quais nutria profundo afeto.

Sua obra percorria o mundo, movida por suas próprias pernas.

Embora Oswald de Andrade afirmasse que no Brasil escritor não é profissão. Jorge Amado provou o contrário;

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