A crítica literária francesa criou a expressão autoficção para designar as memórias romanceadas onde os fatos reais se envolvem com outros que são produtos da imaginação do autor. O termo, no início, era objeto de alguma resistência, mas hoje é bastante usado e aceito. Muitos autores têm produzido obras que se encaixam no novo gênero, entre eles o célebre George Orwell, nascido na Índia britânica, cujas obras “1984” e “A Revolução dos Bichos” tiveram ressonância mundial e estão entre os livros mais lidos.
Em “Um pouco de ar, por favor!”, publicado pela Editora Lafonte (São Paulo – 2021), ele envereda por esse terreno numa longa e minuciosa narrativa que tudo indica tenha muito de pessoal e autobiográfico. O escritor teve uma vida movimentada e muitos eventos aparecem em sua obra, tal como acontece nos tempos em que viveu na Birmânia e passou fome em Londres e Paris. Neste livro, o personagem se surpreende aos 45 anos de idade, muito gordo e usando dentadura, residindo num bairro sem encanto e numa casinha em tudo igual às outras. É inspetor de seguros, tem um carro velho e dois filhos, mas, acima de tudo, sente-se escravizado pela mulher, uma Hilda que o vigia dia e noite. Passa a planejar uma breve fuga desse ambiente sufocante, como diz o título da obra.
Nascido e criado num pequeno povoado do interior da Inglaterra, teve um pai conformista e rotineiro e uma mãe vigilante que controlava a vida do menino e do irmão. Dono de uma loja que vendia produtos agrícolas, o pai começou a sentir que seu negócio declinava embora não percebesse que o mundo estava mudando no período anterior à I Guerra Mundial e novos concorrentes se instalavam na região. Para ajudar no sustento da família, o menino é forçado a deixar a escola e passa a trabalhar como empregado. Contenta-se com a situação e parece não ambicionar nada mais, orgulhoso do ordenado e do uniforme que enverga no trabalho. Mas as coisas acontecem, a Inglaterra declara guerra à Alemanha e ele é convocado. Em pouco tempo está em Londres e depois em Paris, uniformizado e pronto para a luta. É ferido em combate e tratado num hospital até que se recupera. Para sua surpresa, é designado para uma função burocrática em um posto remoto onde nada acontecia e lá permanece esquecido até o fim das hostilidades. Ingressa no chamado mundo dos negócios e atinge uma posição que diríamos de remediado.
Os anos correm até que um dia percebe que tem boa importância em dinheiro com a qual poderá fugir um pouco do sufoco cotidiano. Ingressa numa fase por assim dizer proustiana e organiza na cabeça uma visita de alguns dias ao povoado onde nasceu. Dá início à viagem em busca do tempo perdido. Sozinho ao volante do carro velho, ruma para lá. As surpresas e decepções não tardam. A pequena cidade não existe mais, sufocada por fábricas e construções, ruas inteiras de casinhas iguais, quadradas e com os telhados vermelho, tendo à frente pequeno jardim com a grama pisoteada. Até mesmo a lagoa onde vira os maiores peixes de toda a vida e que desejava pescar fora drenada e transformada num lixão repleto de latas vazias e sacolas de papel. Para completar, nas proximidades da cidade fora construído um aeroporto para aviões que se preparam rapa a II Guerra Mundial cuja chegada era sentida no ar. Para completar, na sua permanência uma bomba caiu por acidente sobre um bairro provocando vítimas e estragos.
Num daqueles dias, andando sem rumo pelas ruas, avista uma mulher que tem algo de familiar. Começa a segui-la até que ela entra mima venda feia e suja e então a reconhece. Era Elsie namorada e companheira de tempos distantes. Gorda, desgastada e desajeitada, nada mais restava da moça que o encantava. Entra na loja a pretexto de comprar um cachimbo, mas só adquire cigarros. Com a alma pesada e grande vontade de chorar recomeça a peregrinação pelas ruas que não eram mais as mesmas. Foi um alívio notar que ela não o reconheceu.
Retornando ao hotel, bebe e bebe, como vinha fazendo desde que chegara. Começa o retorno para casa e à escravidão de Hilda. Sem grande surpresa, constata que ela seguira todos seus passos, inclusive que estivera em outra cidade e não naquela que havia falado a ela. Através de cartas, com a ajuda de duas amigas bisbilhoteiras, ela sabia de todo seu itinerário e, pior ainda, estava convencida de que ele andava com outra mulher, o que não era verdade.
A escravidão, como um polvo, estende seus tentáculos.