A arqueologia peruana não deixa de nos surpreender. Recentemente, pesquisadores escavaram nas ruínas de Pañamarca (norte do Peru) um magnífico recinto cerimonial do povo Moche, datado do século VII d.C. Os moches ocuparam a região norte do Peru entre 350 e 850 d.C. A cada nova escavação, templos e pirâmides são descobertas, revelando uma sociedade violenta e extremamente sofisticada. Sua arte é vibrante, com cores fortes, representando guerreiros e entidades míticas. Muito de sua história e cosmovisão nos é revelado pelos magníficos murais pintados, pelas tumbas suntuosas (Señor de Sipán / Dama de Cao), arquitetura complexa (Huaca do Sol e Huaca da Lua) e pela cerâmica inigualável, que retrata cenas do cotidiano, animais e criaturas mitológicas.
Em julho deste ano, arqueólogos do projeto Paisagens Arqueológicas de Pañamarca anunciaram a descoberta de uma sala sofisticada, repleta de pinturas murais, contendo pilares e um trono. A iniciativa de pesquisa envolve profissionais do Peru e EUA, e o apoio da National Geographic Society, Museu de História Natural e Ciências de Denver (EUA) e Universidade de Columbia (EUA). O que faz desta descoberta algo especial foi a representação pictórica existente no que Jessica Ortiz Zevallos (diretora do projeto) chamou de “Sala do Imaginário Moche”.
A muito tempo, arqueólogos vem discutindo a posição das mulheres no mundo pré-colombiano. A cada nova escavação, evidências vem surgindo que elas não foram meras coadjuvantes no passado de nosso continente. Elas ocuparam, em muitas ocasiões, posição de poder político e religioso, ocupando a função de sacerdotisas e, aparentemente, de mandatárias numa sociedade violenta e segmentada, marcada pela adoração, oferendas e sacrifícios a entidades míticas. As pinturas da Sala do Imaginário Moche nos revelam uma senhora ocupando um trono, sendo reverenciada por um cortejo de visitantes, provavelmente líderes de senhorios submetidos ao seu poder e pagadores de tributos.
Além de uma mulher poderosa representada nas pinturas – associada as criaturas marítimas, lua crescente e as artes em tecido – temos também representações de serpentes, cervos, aranhas, cães e uma batalha lendária entre um guerreiro moche e povos vindos do mar. A certeza que se trata de uma pessoa real vem de vestígios encontrados no próprio trono, do desgaste de seu acento e encosto, e de provas como fios de cabelos e restauração permanente da pintura; o que prova que o espaço de fato era utilizado de modo permanente.
Além da sala do trono, os arqueólogos revelaram também um segundo espaço repleto de grossas colunas, que foi chamado de Sala das Serpentes Entrelaçadas. Igualmente decorado com pinturas, este nos mostra a representação de um ser mítico, com pernas humanas, mas cujo corpo é um emaranhado de serpentes. Os murais contêm ainda a pintura de guerreiros armados e de um monstro perseguindo humanos. Acredita-se que a Sala das Serpentes esteja associada a cerimônias e rituais específicos, por estar ao lado de uma praça, onde seria fácil observar eventuais ritos cerimoniais de uma posição privilegiada e reservada.
As escavações da Sala do Imaginário Moche e da Sala das Serpentes Entrelaçadas está apenas começando, mas já são fundamentais para questionarmos nosso entendimento sobre os papéis de gênero no mundo pré-colombiano. Como afirma Lisa Trever (Universidade de Columbia – EUA), “Pañamarca continua nos surpreendendo não só pela inesgotável criatividade de seus pintores, mas também porque as obras estão mudando nossas expectativas sobre os papéis de gênero do antigo mundo moche”.
Atualmente, os espaços mencionados em Pañamarca encontram-se em pesquisa e fechados ao turismo, devido a fragilidade de suas pinturas.
Dalton Delfini Maziero é historiador, escritor, especialista em arqueologia e explorador. Pesquisador dos povos pré-colombianos e história da pirataria marítima. Visite a Página do Escritor (https://clubedeautores.com.br/livros/autores/dalton-delfini-maziero)