Nas minhas andanças pelo Cariri Cearense ouvi muitos comentários a respeito de um certo Peixoto Júnior. Diziam que era exímio cavaleiro, domador corajoso de animais xucros, vaqueiro sem igual e verdadeiro mestre no manejo do laço.
Nas suas mãos ele parecia pairar no ar, formava um círculo perfeito e caía exato no pescoço da rês fugitiva. Em minutos ele a derrubava e o peão acorria com o material necessário para curar a bicheira ou o ferimento, vacinar ou marcar. Libertado, o animal se afastava parecendo aliviado.
Peixoto Júnior era um astro, objeto de geral admiração. Indagando a respeito, tanto Dr. Napoleão Tavares Neves, médico e historiador da cidade de Barbalha, como Daniel Walker, Raimundo Araújo, Aldenor Benevides e outros confirmaram a veracidade desses comentários. E assim eles ficaram indeléveis na minha memória.
Passados alguns anos, fui a Brasília para uma assembleia de escritores e lá avistei um certo Peixoto Júnior entre os participantes. Seria o mesmo do Cariri? – pensei comigo.
Tratei de indagar aqui e ali e soube que era advogado, alto funcionário do serviço público, secretário da revista Literatura, editada pelo saudoso Nilto Maciel, e ex-presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE), entidade que congrega escritores de todo o país.
Para completar o retrato, era escritor e, acima de tudo, renomado poeta. Procurei me acercar dele e obtive a confirmação: era o mesmo. Dali nasceu a amizade e nos correspondemos ao longo dos anos e até escrevi sobre ele.
Depois, num repente, nasceu a ideia da entrevista. Consultado, ele concordou em falar sobre sua vida e seus feitos e responder às minhas indagações, o que ocorreu há cerca de 30 dias. Peixoto Jr. tem 99 anos e mora em Brasília desde 1976. Acompanhe a entrevista:
EA – Onde e quando nasceu e como foi sua infância?
JPJ – Nasci na zona rural do Município de Granito, Pernambuco, sítio Genipapo. Semana Santa de 1925, quinta-feira santa, no horário do almoço naquele dia de jejum. Infância de menino do mato, brincando com chifre e osso de gado, na bagaceira do nosso engenho de ferro. Montava carneiro encabrestado. Alfabetizado por meu pai e aulas na casa da minha madrinha, por uma moça velha que exigia tratamento de “mia mesta” (minha mestra), saudação na chegada com jaculatória e pedido de bênção. Sofri e apliquei a palmatória no dia do “Argumento” (recordação do ensinado). A seguir, Escola Estadual na vila Caririzinho. Preparação para o exame de admissão ao ginásio em Jardim/CE com estudantes do Colégio São João, Fortaleza, no seu período de férias, que deu às aulas a denominação de Ateneu Jardinense. Curso de Admissão e o primeiro ano secundário no Ginásio do Crato (1938/39). Transferência para o Colégio Castelo Branco, Fortaleza, 1940. Abandono do estudo no segundo semestre do terceiro ano, 1941. Volta para casa e reintegração à vida rural.
EA – Como se deu o aprendizado nas lidas da fazenda e com que idade você se tornou vaqueiro?
JPJ – Não há aprendizado, nasce-se sabendo. Começa por separar, ao anoitecer, os bezerros das vacas e na manhã seguinte retorná-los ao curral, um a um, para o apojo. Soltas as vacas, o menino tange os bezerros para o seu pasto. Abandonado o colégio, volto às lidas e, com 17 anos, torno-me vaqueiro.
EA – Você chegou a ser vaqueiro “encourado” e por quanto tempo?
JPJ – Sim, cheguei. Conhecido artesão do couro olhou-me e, sem tirar medidas, confeccionou, com perfeição, perneiras (perneira puxa) e gibão (perneira puxa, justa ao relevo das pernas e das coxas, usado com chinelas de rosto fechado, chinelas de vaqueiro). Diferente das perneiras roló, frouxa nas pernas, sapato meio cano, sapato de vaqueiro, ambos com par de esporas de roseta grande. Fui vaqueiro por uns dois anos.
EA – Que espécie de couro era utilizado nesse vestuário? Quem o confeccionava? As costuras eram feitas com linha grossa, barbante ou tentos de couro?
JPJ – Era utilizado couro curtido de carneiro, couro de bode (a vermelha), costurado com correia e camurça. Havia especializados em fazer uniforme (“liforme”) de couro.
EA – O rosto, os braços e as pernas como eram protegidos nas cavalgadas pela caatinga? O chapéu, como se prendia?
JPJ – Proteção pela roupa de couro. Prendia-se o chapéu por dois barbicachos, um no queixo e o outro no cangote.
EA – Como descrever a sensação de andar encourado naquele calorão?
JPJ – Não me lembro de ter sentido calor nem escutado algum vaqueiro se queixar.
EA – Em que animal você montava nas incursões pela caatinga, cavalo ou burro? Teve algum animal de estimação que entendia seus gestos?
JPJ – Montava o cavalo “Pivô” para o qual o gesto era chicote ou espora.
EA – As pessoas comentavam que você desapareceu de repente do Cariri, que aconteceu, foi cansaço ou outro motivo? Para onde você foi?
JPJ – Vendi os couros e um boi e migrei para São Paulo, Alta Sorocabana, para ser “pinhão de invernada” “bóia fria”. Fui morar com minha irmã casada lá residente.
EA – Conte-nos como se deu essa mudança radical de vida. Onde estudou, o que cursou e quando ingressou no serviço público.
JPJ – Voltei do São Paulo, casei-me, vendi ao irmão o meu direito no sítio Genipapo, comprei loja de tecidos, troquei por um caminhão Chevrolet 40, cabine de madeira. Escrevi na cabine “saudade, asa de dor do pensamento”. Permutei o cabine de madeira por um cabine de aço que, por dívidas do comprador, foi tomado pelo vendedor. Em Serrita/PE tornei-me Gerente da Cooperativa Agro-Pecuária. Fiz o concurso de Escrivão de Coletoria Federal (DASP). Aprovado, fui nomeado para Pernambuco, Coletoria de Sertânia, cidade onde voltei a estudar e concluí o curso ginasial, aulas noturnas, Colégio Olavo Bilac. Por permuta, cheguei à coletoria de Petrolina, donde, à noite, cruzando o Rio São Francisco pela ponte, em Juazeiro da Bahia frequentei a Escola Técnica de Comércio. Pedi transferência para Amaraji, de lá para Garanhuns, quando, concursado (DASP) para o cargo de Fiscal do Consumo integrei a primeira turma da Faculdade de Direito de Caruaru/PE. Não advoguei. A OAB não registrava título de funcionário público das áreas de arrecadação, tributação e fiscalização.
EA – Já escrevia antes ou começou nessa nova fase? E a vis poética, quando se manifestou?
JPJ – Comecei a escrever e publicar em Garanhuns, na área tributária. Verso eu fazia desde vaqueiro, verso matuto, cantava embolada.
EA – Continua poetando? Tem publicado seus poemas? Livros editados?
JPJ – Sim, sim. Livros editados: Panorama Tributário Nacional, O Imposto do Selo Federal, Bom Deveras e Seus Irmãos, Cartas & Poemas, (com Raimundo Alencar Peixoto), Sobre o Mundo, Padre Peixoto – Intelectual, Político, Sacerdote, Crônica Memorista. Como Fiscal, trabalhei em Pernambuco, São Paulo e Brasília.
EA – Para encerrar, brinde-nos com um de seus poemas.
“Separação”
Um ano sem você, falta palavra
Para expressar o meu triste sentir;
Saudade é pouco, apenas escalavra
o forte sentimento a me afligir.
Não há consolação, na mente lavra
Terrível vazio a me destruir
Com força venenosa que azinhavra
Minha disposição de resistir.
Setenta e sete anos de união,
Tempo tranqüilo sem ter discussão,
Eu a amei e ela me amara.
É consumido o tempo do preceito
“até que a morte…” aí não tem mais jeito,
Pois chega “a indesejada” e nos separa.
EA – Obrigado, amigo Peixoto. Sua vida é uma história sui generis e vai fazer sucesso.